Introdução

Miguel ViegasNeste pequeno texto sobre a proletarização das profissões intelectuais, irei procurar lançar algumas pistas de reflexão sobre esta questão actual e objecto de muita mistificação por parte daqueles que fazem a apologia do pensamento único, do fim das classes sociais, alimentando no fundo uma ideia segunda a qual não existem mais classes antagónicas e portanto a luta de classes é um termo do passado que já não faz mais sentido.

Como é óbvio para todos, e creio que isto ficará claro ao longo da minha intervenção, a luta de classes está hoje e cada vez mais no centro da actualidade e deve por isso representar um quadro de análise sem o qual não é possível compreender as movimentações sociais e políticas que acontecem à nossa volta com todas as suas consequências que, invariavelmente são sempre muito distintas conforme as classes que são atingidas.

Desta forma, ao longo da minha apresentação, começarei por falar de alienação, na sua concepção marxistas, sem a qual não é possível perceber a emergência e a importância do trabalho intelectual quer no interior da esfera produtiva com o seu contributo para a criação da mais-valia, quer no processo de produção de ideias destinadas a alimentar o domínio da superstrutura ideológica que suporta e justifica o nosso actual modo de produção capitalista. Depois de clarificar este conceito, iremos tentar perceber a incorporação crescente do trabalho intelectual na nossa sociedade, à luz da actual fase de desenvolvimento do capitalismo e da chamada terceira revolução tecnológica assente na informática, nas biotecnologias e na automação. Ao descrever este processo de incorporação crescente de trabalho intelectual na engrenagem do processo de produção capitalista e à luz das leis mercantis que lhe estão associadas, procuraremos aclarar os mecanismos que determinam o processo de alienação do trabalhador intelectual e que em última instância estão na base da sua proletarização. Finalmente, concluiremos com a necessidade óbvia de alargar a nossa luta procurando envolver estas camada social, que hoje, inevitavelmente se confronta com questões absolutamente comuns às restantes classes laboriosas como sejam a exploração desenfreada, a precariedade e o desemprego.

1. A Alienação

Retomando conceitos importantes, que não sendo novos, continuam actuais, e como tal não devem nunca ser esquecidos, começo pelo essencial. O homem distingue-se na natureza pelo facto de, ao contrário dos restantes elementos vivos (animais ou plantas), não dispor de elementos no seu organismo que lhe permita sobreviver no meio natural. Para isso necessita de transformar a natureza, e a partir dela, construir ou fabricar estes elementos. Necessita de roupa para se aquecer, ferramentas para caçar etc. Este é um elemento central na nossa análise. Entre o homem e a natureza se interpõem os meios de trabalho com os quais o ser humano produz os bens que precisa para sobreviver. Podendo ser esta uma questão trivial, ela é da maior importância. De tal forma que nós, comunistas, na nossa interpretação materialista da história, afirmamos que a generalidade dos acontecimentos que se sucedem na história tem a sua origem precisamente no processo de produção material que é uma condição fundamental à própria existência do ser humano.

Nos tempos mais remotos da pré-história, os meios de trabalho eram rudimentares, um arco, um machado ou uma lasca. À medida que se aperfeiçoam as ferramentas ou os meios de trabalho que se interpõem entre o homem e a natureza (objectos de trabalho), ocorrem dois aspectos que são fundamentais. Em primeiro lugar, ferramentas mais aperfeiçoadas vão elevar a produtividade do homem. Durante centenas de anos, o homem apenas foi capaz de produzir o suficiente apenas para garantir a manutenção da sua existência. Com a revolução neolítica, há cerca de 10 000 anos, o homem dá um importante passo na domesticação da natureza. Com novas tecnologias ligadas à agricultura e à criação de animais, dá-se um salto prodigioso na produtividade e nasce o sobreproduto. O homem consegue produzir num dia mais do que necessita para ele próprio. O segundo aspecto decorre do primeiro. A partir do momento em que existe sobreproduto, passa a ser rentável a exploração do trabalho alheio. Mas esta exploração apenas pode ser levada a cabo por quem detém os meios de trabalho. Surge assim de forma clara o papel central da posse dos meios de produção na separação da sociedade em classes antagónicas e na forma como é repartido o sobreproduto. Primeiro na sociedade esclavagista com a oposição entre o escravo e o patrício, depois mais tarde no período feudal entre o servo e o senhor e mais tarde ainda entre o trabalho e capital.

A alienação do trabalho descrita mais tarde por Marx no Capital está fortemente associada à revolução industrial e à divisão do trabalho, mas também à perda de posse do trabalhador das suas ferramentas. O artesão da guilda medieval, ou o agricultor no sistema de cottage ainda controla o processo de produção identificando-se com o fruto do seu trabalho. Com a emergência da fábrica capitalista, o operário encontra-se despojado dos meios de trabalho e o produto do seu trabalho torna-se-lhe estranho e com ele deixa de se identificar. Em vez de controlar a ferramenta, submete-se a ela. O trabalho torna-se mercadoria, que o trabalhador, sem outro meio de subsistência, vê-se obrigado a vender ao capitalista que o incorpora no processo produtivo como se de qualquer matéria-prima se tratasse.

2. A crescente incorporação de trabalho intelectual no processo produtivo.

Nas últimas décadas assistimos de forma quase exponencial ao assalariamento de largas camadas de profissões intelectuais. Vamos detalhar sucessivamente três aspectos desta realidade para no final tentarmos perceber o que há de comum entre elas. Falaremos em primeiro lugar da importância crescente da inovação para a manutenção das taxas de lucro. De seguida, falaremos da mercantilização dos serviços. E, finalmente mencionaremos o processo de apropriação dos meios de produção do conhecimento e das ideias.

O modo de produção capitalista alimenta-se do lucro, sendo este o desígnio fundamental que determina o seu comportamento e a sua estratégia. Procurando contrariar a tendência de decrescimento da taxa de lucro, o sistema capitalista procurou desde muito cedo alargar o seu domínio geográfico, conquistando novos mercados e assegurar simultaneamente o controle sobre vastas áreas ricas em matérias-primas fundamentais para assegurar o processo de reprodução e acumulação do capital. Sendo o planeta finito por natureza, é claro que este processo de expansão teria naturalmente que estar limitado no tempo. Desta forma, e numa tendência que se acentua a partir da segunda guerra mundial, instala-se progressivamente um novo paradigma no seio da produção capitalista, cuja manutenção das taxas de lucro passa pela procura e renovação de rendas monopolistas. Estas devem ser entendidas como a procura de novos produtos que possam garantir uma exclusividade, ainda que temporária, às respectivas empresas produtoras. É partindo desta premissa que começam a surgir no seio de grande parte de empresas departamentos ligados à inovação com objectivos de desenvolver novos produtos cujo ciclo se renova de forma cada vez mais frequentes. Paralelamente, surgem também departamentos de comunicação e marketing destinados a condicionar o consumo de massas fazendo acreditar às pessoas através de técnicas cada vez mais sofisticadas que tal o tal produto não só é único como indispensável. Olhando para as tendências das últimas décadas é visível um enorme crescimento das verbas gastas pelas empresas quer no sector da investigação e do desenvolvimento, que no sector do marketing e da publicidade. A estes gastos crescente está obviamente associado a incorporação de massas crescentes de trabalhadores intelectuais que passam então a estar subordinados ao processo produtivo. Neste sentido se dá a proletarização do trabalho intelectual na medida em que a força de trabalho destes trabalhadores intelectuais passa a ser uma componente do processo de produção e como tal contribuinte directo para a criação da mais-valia. Esta incorporação em massa de trabalhadores intelectuais não é caso único na história. Apenas reflecte uma tendência mais recente. Com efeito, antes desta vaga, muito embora num registo mais moderado, assistimos na primeira metade do século XX à incorporação de importantes profissões intelectuais ligadas sobretudo à gestão, aos recursos humanos e às leis.

A segunda tendência que contribui para o assalariamento consiste na industrialização generalizada de toda a actividade humana, onde os traços tradicionais da proletarização do trabalho, que no passado se aplicavam sobretudo ao trabalho braçal da grande indústria moderna, afectam hoje e de forma crescente o trabalho intelectual. Em sectores até aqui eminentemente públicos, frutificam em toda à parte grupos empresariais ligados à saúde, à educação, à intermediação financeira ou à segurança social. Nestes sectores que até há pouco tempo se encontravam fora da órbita das leis mercantis, impera a lógica do lucro. No seio destes impérios, laboram autênticos exércitos de trabalhadores intelectuais, claramente submetidos à mesma lógica de exploração. Porque nestes sectores privatizados pela social-democracia em nome na eficiência, impera naturalmente a lógica do lucro máxima e não a resolução de desafios tão importantes para um país como sejam a educação e a saúde de um povo. E esta lógica do lucro implica maximizar a taxa de mais-valia que está na proporção inversa dos custos do trabalho.

Finalmente a terceira tendência que abrange a produção de ideias. Com efeito, o processo de privatização da esfera pública alargou-se igualmente à apropriação privada dos processos de produção de ideias e conhecimento todos orientados para a difusão de linhas de pensamento ideológico destinadas a moldar consciência e amortecer as contradições do sistema. Nesta tendência cruzam-se vários elementos facilmente identificáveis, como sejam o surgimento de grandes grupos de comunicação social, universidades privadas, grupos editoriais, produtoras cinematográficas etc. Também neste domínio trabalham amplas camadas de profissões intelectuais, igualmente sujeitas a este processo de proletarização descrito anteriormente.

3. A alienação do trabalho intelectual

A proletarização do trabalho intelectual é comum a estas três tendências. A par deste processo de proletarização, ou melhor intrinsecamente ligada a este, encontramos a especialização do trabalho manual, o seu parcelamento, a sua atomização. Vivemos um período onde se glorifica o perito, mas este perito está normalmente acantonado a domínios cada vez mais estreitos do conhecimento. O perito está cada vez mais condenado a especializar-se num ramo específico de um domínio científico, tendo apenas uma ideia muito vaga do conjunto de conhecimento onde se insere e sem conhecer coisa nenhuma dos outros domínios do conhecimento. Um tal trabalho intelectual fragmentado, tendo perdido toda a visão de conjunto das actividades sociais onde se insere, só pode ser um trabalho alienado. Neste sentido a proletarização do trabalho intelectual conduz inevitavelmente à sua alienação. Da mesma maneira que qualquer operário fabril metalúrgico pode estar sem o saber a contribuir para a construção de uma bomba atómica, o jornalista cumprindo uma agenda imposta por uma determinada linha editorial pode não ter a consciência do seu papel na consolidação da superstrutura que suporta o sistema capitalista e procura assegurar a sua imortalidade e perpetuar a sua própria condição de explorado.

Com a proletarização do trabalho intelectual generaliza-se igualmente o assalariamento e a economia mercantil, o que implica o aparecimento de um mercado para este trabalho intelectual. Neste mercado, a força de trabalho é vendida e comprada como qualquer outra mercadoria, adquirindo um preço de mercado que flutua de acordo com as leis da oferta e da procura. Neste sentido, e de acordo com os princípios da economia liberal, ninguém está seguro, por mais qualificado que possa ser o trabalhador. Os mesmos mecanismos de flexibilização laboral, a precariedade e o desemprego afectam hoje mais do que nunca os trabalhadores intelectuais.

Conclusão

Em conclusão, direi que a proletarização do trabalho intelectual com a sua fragmentação e a sua mecanização comporta um risco mas também uma potencialidade. Por um lado leva à apatia, à indiferença e resignação de amplas camadas de trabalhadores intelectuais. Vimos a forma como o capitalismo tende a promover a comercialização e mercantilização de toda a actividade humana inclusive as actividades da superstrutura.

Mas por outro, é inegável que, ao incorporar largas camadas de trabalhadores intelectuais o capital enriquece o proletariado com novas ideias e capacidades que importa valorizar e potenciar, particularmente ao nível das faixas etárias mais jovens. Daí ser fundamental dar a devida importância a este sector que assume uma proporção crescente na nossa economia, e que, sem deixar de conter especificidades próprias, acaba por sofrer na pele os mesmos efeitos da exploração capitalista e pode certamente dar um enorme contributo ao caudal de luta que nos há-de levar à transformação social que todos almejamos.

 

 

Miguel Viegas